sábado, agosto 30, 2014

Eu matei um homem

Eu matei um homem.

Não me perguntem o que aconteceu, não sei explicar. A arma descontrolou-se. Ou eu fui que não consegui contê-la entre as minhas mãos. Antes disso o primeiro tiro com a pequena metralhadora correra bem. Depois o homem caído no chão. O sangue misturado com a areia. Os gritos da minha mãe. O meu pai ainda com o telemóvel na mão a filmar, porque atrás da objetiva pode ser que tudo ainda seja ficção como no cinema. Alguém me pega ao colo. Os meus calções cor-de-rosa estão também manchados com sangue do homem que eu atingi com o meu tiro. Acertou-lhe na cabeça. Ninguém sabe se vai se resistir ao ferimento. 

Decido que já não quero usar mais tranças no cabelo. Quero cortá-lo curto. Não quero voltar a ser menina, nem a brincar com bonecas novamente. Também não tenho vontade de chorar. Estou num hospital, numa sala colorida entre desenhos rabiscados nas paredes e cubos no chão, há uma senhora que fala devagar comigo para que eu que também fale com ela sobre o que aconteceu. E eu não sei falar. 

Ainda que houvesse uma pequena esperança que o homem pudesse sobreviver, eu soube desde do início que o tinha matado. Por isso, não sei se há muito a dizer, senhora que falas devagar com uma voz mansinha que me enerva. Também decidi que já não quero um irmão. Ou uma irmã. Sou má. Ia acabar por lhe fazer qualquer coisa também. Não me importo se voltar a cair e a esfolar os joelhos, ou a partir de novo o queixo. Juro que não me vou queixar se doer. Vou abrir os olhos com muita força para não chorar. Como agora. 

Eu tenho nove anos. E matei um homem. 



quinta-feira, agosto 21, 2014

Anestesia

«O copo partiu-se e a água entornou-se.»
 «Não faz mal. Limpa-se e amanhã compra-se outro no chinês.»
(O som agudo do vidro a estalar e a quebrar, tão igual ao que corre cá dentro nos dias que passam.)
«A roupa ficou demasiado tempo na máquina, cheira a mofo. »
«Lavarei novamente. »
(Pudesse eu tão facilmente arrancar o que em mim se oxidou.)
«Mesmo assim eu fico cá esta noite contigo.»
«Obrigada.»




(No princípio foi o beijo, no fim também. )

sábado, agosto 16, 2014

In the end


O tempo é um lugar estranho, habitado pelas memórias que regurgitam em forma de crostas de sangue pisado. Tão pisado. 

No corpo corre sangue novo. Até amanhã. 

sexta-feira, agosto 15, 2014

Duplo Engano- O conto de um Verão

Duplo Engano

Chega cedo ao aeroporto. Não podes carregar mais do que uma mochila contigo no avião. Coloca a tua bagagem debaixo do banco em frente ao teu lugar, ou na bagageira por cima, se alguém te ajudar. Não adormeças. Ouve as instruções de segurança.

Sou outra. Provam-no as minhas calças de ganga estilo “baggy” e os ténis «All-Star» pretos. O cabelo esticado está preso por um elástico. Sem rimmel,  sombras nos olhos ou batom. Não pendem brincos das orelhas como é hábito. Há apenas uma t-shirt branca lisa e um casaco no colo para, quando aterrar, me proteger da eventual diferença de temperatura.
Tenho o cinto de segurança colocado. Pronta para a descolagem.

Não podes carregar frascos com líquidos com mais de cem mililitros. Tens que te sentar direita no avião e pôr o cinto durante a descolagem e aterragem. Não podes levar mais do que um isqueiro. Nem tesouras. Mastiga pastilha elástica por causa da pressão.  Opta pelo modo de voo no telemóvel durante a viagem. 

Estou sentada no lugar do meio. Entre dois homens. Um, entretém-se com uma revista de economia e política que folheia sem perder tempo a ler. O outro, mais velho, de calvície prematura, resmunga com as várias falhas da companhia área, primeiro pelo atraso na descolagem, depois pela temperatura do ar condicionado, e pela já costumeira  falta de espaço entre os assentos numa low-cost. «Viajamos num aviário», é a expressão utilizada. Rio-me. E ele nota. Porque há sempre razões para nos queixarmos, dou-lhe razão. A conversa acaba por acontecer, os temas surgem e prosseguem como cerejas na contagem dos minutos o nosso destino se completar.

Não podes fumar. Evita comer refeições pesadas. Ou beber álcool. Não fales com estranhos.

O outro, o da revista que não lê, pede desculpa e intervém na conversa. É um miúdo novo. Talvez até mais novo do que eu. Tem a barba por fazer porque quer ser mais velho. «E rico, acrescenta sem qualquer pudor a meio da conversa.» No saco das compras do aeroporto, traz tabaco. Contrabando para os amigos ingleses, justifica-se. Rimo-nos. Os humanos são seres gregários. Precisam de partilhar experiências. Neste pedaço de espaço definido no céu, na rota de Lisboa- Londres, acima das nuvens, muito acima dos oito mil pés de altitude, fala-se de tudo. Do que une os homens e as mulheres. Os diferentes idiomas que pronunciámos ao longo das nossas três vidas, as culturas que se gravaram na pele, as pessoas que fizeram acontecer o nosso passado. No fim, o trabalho como única tábua de salvação para a loucura.
«Um dia quero ser pai», diz o mais novo dos homens.
Fecho os olhos com muita força. Despercebidamente, toco-lhe no ombro com o meu. Num mano a mano que significa que também quero ser mãe. «Serás tu um bom pai?»
 Afasto o pensamento marcadamente biológico. Vibrante e orgulhoso, afirma que apesar disso, não se dá a ninguém.
 «Ninguém me conhece.»
Sinto-lhe o luto que se sobrepõe à idade, ao cabelo despenteado e ao sorriso indeciso  de puto convencido. «E tu», pergunta-me. Respiro a mesma falta de amor, apetece-me retribuir.
 «Vou casando», respondo.
O homem mais velho ri-se da cumplicidade que se instalou nos lugares 26 do avião. A sua mente vagueia por todas as mulheres de quem recorda o cheiro da pele, como réplicas de sismos a que submeteu o corpo.
Atesta-nos, a nós, novos na idade e na vida, que a incandescência do amor permanece. Ainda sem sequer nos apresentarmos, olhamos-nos pela primeira vez nos olhos. E não acreditamos nessa qualquer coisa a que não queremos dar nome ou existência. Prende os olhos e faz suar as mãos.

Podes morrer se o avião cair. Se sentires turbulência, olha pela janela. Não desperdices o momento, as nuvens que alcançaste e o medo que superaste. 

A voz do comandante informa que o voo está prestes a terminar. Em Londres não chove. Debita ainda uma série de outras coisas que o meu cérebro não processa. Nem em português nem em inglês. Olhamos para os respetivos relógios. Eu e ele. Passaram já duas horas e meia? Garantiria, a quem mo perguntasse, que passara apenas meia-hora. Apresentamos-nos finalmente: Maria, José. No original.
No desembarque, perdemos-nos do homem mais velho de quem nunca chegámos a saber o nome. Está mais habituado a despedidas do que nós.

Conserva o teu bilhete até abandonares o aeroporto. E o teu cartão de cidadão à mão. Leva contigo as libras.
O aeroporto são quilómetros de pessoas à espera de um sonho. Passaportes e identidades que são verificadas cuidadosamente.
«Qual foi a tua maior loucura?», pergunta-me José, enquanto aguardamos na fila para que as nossas identidades sejam verificadas e possamos entrar em Londres.
Ainda não a cometi, respondo-lhe.
Sim, eu sei, a fotografia do cartão de cidadão não se parece comigo neste momento. Mas, sim sou eu, confirmo em inglês. Ainda que não tenha ficado convencido, deixou-me passar.
E tu quem és, afinal? Como me desencantaste?
Aponta-me o hotel do aeroporto.
 «Temos esta noite. Podemos ser tudo.»
Olho desconfiada para o elevador que nos levará até ao hotel do aeroporto. Ele procura a minha mão e aperta-me os dedos. Estamos parados num corredor. Esbarram contra nós dezenas de pessoas com malas coloridas, crianças e tempos que nunca iremos adivinhar. Paralisámos num abraço estranho em que o desejo se insinua  quente e desconfiado.
«Podemos ter esta noite», repete-me ao ouvido. A barba dele roça no meu rosto. Evito o beijo. Os nossos lábios quase se tocam. Quase que se pode fazer acontecer outro futuro aqui neste território neutro.
Não deixaremos raízes se trocarmos de corpo, se limparmos o sangue e expelirmos o medo, pois não?

Engole sempre as lágrimas. Por mais ácidas que sejam. Mente. Foge de ti e dos outros. 

Os meus dedos ultrapassam a carne do seu rosto branco e pequeno. Quero decorá-lo, sulco a sulco. Os olhos castanhos, a barba por fazer, o queixo aquilino. Preciso que tudo fique retido em mim. Fechar o cheiro e esquecer-me devagar, todos os dias, se possível. Não lhe confesso nada disto.
Por fim, deixo que me aperte a cintura com os seus braços, e sinto, por um segundo, como poderia ser possível tudo isto. Não. Gritei nunca mais, há mais tempo do que tu, desculpa.
As nuvens atravessam-me os olhos.O teu nome e o meu:  José e Maria, no original.
«Promete que vais ser feliz.» – peço-lhe, enquanto lhe beijo a mão.
«Prometo. Mas não me vou esquecer do que poderia ter sido.»
«Não poderia ter sido nada. Só o que foi. O nosso momento de fogo e engano.»
Não olho para trás. Nunca mais.