Vivemos a perder. Todos os dias abandonamos alguém à beira da estrada. Todos os dias nos despedimos de alguém que no dia seguinte não vamos ver. Dizemos adeus a um rosto, sem lhe conhecer o sorriso, dispensamos corpos sem lhes enxergar os encantos. Amordaçamos as vozes sem sequer lhes proporcionar o tempo de uma conversa banal. Escondemo-nos na gola do sobretudo para não ver a lágrima do outro cair. No silêncio de nós. Vamo-nos embora todos os dias, sem sequer reparar no esmero dos novos sapatos de quem nos impediu de morrer.
- Fica bem?- pergunta o homem de bata branca que me salvou as memórias.
- Ficarei. Fico sempre bem antes de morrer.
Ri-se. Afaga-me o cabelo despeitadamente. Podia ser meu pai. Meu professor. Meu amante.
Agora, encostada ao vidro do táxi, amachuco com força as prescrições de nomes compridos e comprimidos em linhas paralelas. Que nunca se encontram: memória do muito que se lançou ao desbarato.
Ficam as perdas inevitáveis. O tempo quase irrecuperável. Como daquela vez, em que roguei que te fosses embora, quando só queria que ficasses. Desviámo-nos do caminho um do outro. Apartámos palavras e afastámos emoções. Só para ficar longe. Para perder.
E já perdemos tanto...
4 comentários:
Vivemos a perder porque temos medo de nos encontrar, temos medo da mudança que isso possa originar!
Gostei do que li.
EuSou
Magnífico texto!
Do melhor que já li, independentemente de onde o li.
Lê-se e relê-se e é-se sempre, fatalmente, compelido a regressar a ele.
Está lá tudo: a elegância da construção, a síntese da concepção, o carácter "latejantemente" fragmentário que faz com que o texto pareça respirar (respirar com extrema com dificuldade---talvez, até, soluçar...) mas, sobretudo, uma centelha, duas, três, várias centelhas de pura humanidade que chegam a causar dor física em quem lê pela pungência e pela evidente, pulsante, sinceridade.
Um texto verdadeiramente... "em sangue".
Quem me dera que no meu pequeno texto tivesse lá tudo isso o que descreveste.
É apenas e só a constatção de um doloroso facto: vivemos a perdermo-nos uns dos outros. E sim, de algum modo, isso é ferida aberta a sangrar.
Ainda assim obrigado pelas palavras. Têm sempre o condão de me fazer sorrir e de me obrigar a escrever. Que deveria ser um compromisso. Mas eu não tenho jeito para compromissos, só para naufrágios. Como este.
Disparate!
Quem consegue projectar-se e projectar as suas dores num texto como tu, está muito longe de poder ser considerado um náufrago!!...
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