quinta-feira, setembro 03, 2009

Vivemos a perder.

Vivemos a perder. Todos os dias abandonamos alguém à beira da estrada. Todos os dias nos despedimos de alguém que no dia seguinte não vamos ver. Dizemos adeus a um rosto, sem lhe conhecer o sorriso, dispensamos corpos sem lhes enxergar os encantos. Amordaçamos as vozes sem sequer lhes proporcionar o tempo de uma conversa banal. Escondemo-nos na gola do sobretudo para não ver a lágrima do outro cair. No silêncio de nós. Vamo-nos embora todos os dias, sem sequer reparar no esmero dos novos sapatos de quem nos impediu de morrer.
- Fica bem?- pergunta o homem de bata branca que me salvou as memórias.
- Ficarei. Fico sempre bem antes de morrer.
Ri-se. Afaga-me o cabelo despeitadamente. Podia ser meu pai. Meu professor. Meu amante.

Agora, encostada ao vidro do táxi, amachuco com força as prescrições de nomes compridos e comprimidos em linhas paralelas. Que nunca se encontram: memória do muito que se lançou ao desbarato.

Ficam as perdas inevitáveis. O tempo quase irrecuperável. Como daquela vez, em que roguei que te fosses embora, quando só queria que ficasses. Desviámo-nos do caminho um do outro. Apartámos palavras e afastámos emoções. Só para ficar longe. Para perder.

E já perdemos tanto...

4 comentários:

Anónimo disse...

Vivemos a perder porque temos medo de nos encontrar, temos medo da mudança que isso possa originar!

Gostei do que li.

EuSou

Anónimo disse...

Magnífico texto!
Do melhor que já li, independentemente de onde o li.
Lê-se e relê-se e é-se sempre, fatalmente, compelido a regressar a ele.
Está lá tudo: a elegância da construção, a síntese da concepção, o carácter "latejantemente" fragmentário que faz com que o texto pareça respirar (respirar com extrema com dificuldade---talvez, até, soluçar...) mas, sobretudo, uma centelha, duas, três, várias centelhas de pura humanidade que chegam a causar dor física em quem lê pela pungência e pela evidente, pulsante, sinceridade.

Um texto verdadeiramente... "em sangue".

Rute Coelho disse...

Quem me dera que no meu pequeno texto tivesse lá tudo isso o que descreveste.

É apenas e só a constatção de um doloroso facto: vivemos a perdermo-nos uns dos outros. E sim, de algum modo, isso é ferida aberta a sangrar.

Ainda assim obrigado pelas palavras. Têm sempre o condão de me fazer sorrir e de me obrigar a escrever. Que deveria ser um compromisso. Mas eu não tenho jeito para compromissos, só para naufrágios. Como este.

Anónimo disse...

Disparate!
Quem consegue projectar-se e projectar as suas dores num texto como tu, está muito longe de poder ser considerado um náufrago!!...