sexta-feira, abril 30, 2010

A Gaivota

Como te prometi, regressei. Perdoa o tempo que demorei. É verdade, perdi o medo, perdi o medo de regressar. Voltei. Vivo agora das memórias. Das tuas memórias e das nossas... Desço as escadas até à praia. Redescubro os nossos mil lugares. O sol mergulhou inteiro na linha do horizonte, na linha que os meus olhos alcançam. A linha que quiseste ultrapassar.

Enterro, ao caminhar, os pés na areia escaldante.
Será que foi este vento que te arrastou? Será que foi nesta espuma que te transformaste? Será que estes grãos amarelados que piso são restos teus?

Tinha de ser aqui... tudo tinha de terminar aqui. Porquê?

Fixo os olhos na areia e no mar. Em tudo que resta das minhas lembranças desta praia. Não quero, mas... soltam-se lágrimas, lágrimas que nunca chorei, lágrimas que nunca mereceste... lágrimas que só tu poderias abafar.

Mas estás longe. Longe, apenas longe. Ainda existes? E que diferença faria isso hoje? Estás longe... é apenas isso que me magoa.

Olho o céu que perdeu o calor do sol e ganhou as cores da harmonia, da perfeição. Dezenas de aves esvoaçam pelos céus, céus que um dia quiseste alcançar.

Uma gaivota pousa na duna: na nossa duna. Quieta, olha tudo o que a rodeia. Parte. Atravessa os céus. Já só a distingo pela mancha cinzenta que se confunde com a escuridão da noite. E a gaivota voa... voa... Voas...?

Volto para a antiga casa. Talvez adormeça a ouvir os sons da escuridão, talvez a lua ilumine o meu sono. Talvez amanhã te esqueça. Talvez amanhã...

É manhã. É cedo. O sol também acabou de acordar. Dormi bem, por estranho que te pareça. Hoje vou mesmo ter a certeza se perdi o medo. Vou nadar até à gruta.

Tenho medo de não conseguir, da dor ser mais forte. As lágrimas podem vencer as vagas do mar? Tenho medo, medo, medo de ter medo. Mas devo-te isso. Os medos ultrapassam-se... sempre?

Aproximo-me do mar. Tenho medo. Sempre o medo. Medo.

O contacto com a água provocou um arrepio que, rapidamente, se estendeu ao corpo todo. Mas não é o momento de recuar. Não agora. Nadei, passei os rochedos, ou o “Adamastor”, como lhe chamávamos. Tive, pela primeira vez, medo do mar. Engoli muita água, tanta que a garganta secou com o sal. Ali, também não havia necessidade de falar.

Alcancei a gruta depois de muito esforço. Senti-me extenuada e com muito medo. Muito medo do que iria encontrar. Fatigada, deixei-me cair nas réstias de algas secas e areia, que ali se encontravam. Fechei os olhos e, mais uma vez, tive medo. Medo de me perder. Encontrei o cofre. E agora...? Tenho medo...

Uma gaivota atravessa a gruta e pousa em cima do cofre. Quieta, olha tudo o que a rodeia. Parte, é livre de partir. É livre de voar. Como tu.

Durante instantes fixei o cofre. Não valia a pena abri-lo. Nem mesmo levá-lo. Era teu... era do mar. Ele que o levasse.

Abro o cofre. Choro. O búzio, a vieira preta, a estrela do mar e uma folha de caderno dobrada em dois. Ao aproximar o búzio do ouvido oiço vozes. Vozes indefinidas... a tua ou a do mar? Talvez apenas oiça a do meu coração. Talvez...

Cuidadosamente, pego na vieira preta. Foi a primeira relíquia do nosso cofre. A primeira concha que achei quando vim para aqui morar. Tem meses, séculos de memórias e histórias por contar.

A estrela do mar foi uma prenda tua, no primeiro aniversário da nossa amizade. Antes guardávamos também aqui as cartas que escrevíamos. Mas essas rasgaste-as ao vento...

Deixa-me ser cobarde uma vez mais e confessar-te que tenho medo. Medo de ver a folha do caderno. Medo, medo de me perder. A gaivota voltou...

Pousa mesmo a meu lado. É linda: cinzenta, com um bico longo. Envolve-a uma atmosfera de mistério. Parece que reconhece tudo isto, eu, as lágrimas, o cofre e este lugar.

Aproxima-se mais, toco-lhe medo. Não foge, não pica. Acaricio-lhe as penas com movimentos suaves com que ela se delicia. Afasta-se. Quieta, olha tudo o que a rodeia. Parte. Sempre.

Desdobrei a folha. Um desenho: o teu rosto, cortado por uma gaivota cinzenta... e uma pequeno texto, que li a medo:

“Matilde, se um dia conseguires, perdoa-me. E tenta... tenta ser feliz. Concretizarás esse sonho. Tua, para sempre...”

Ela descobrira a gaivota. Ela era a gaivota. Era a gaivota que, livremente, atravessava os céus. Era a gaivota que voava. Era livre.

Pertencia ao paraíso ambicionado, ao mar e ao vento. Pertencia à liberdade.

A gaivota pousara mais vez junto ao cofre. Fora o seu último voo. Deixou que eu lhe fizesse uma última carícia e fechou, para sempre, os olhos.

Morrera. Abandonei-a nas ondas do mar... juntar-se-à a ti, quando o sol mergulhar inteiro, na linha do horizonte...
 
(Tinha 15 anos. Sonhos faziam a vez de olhos, a liberdade pulsava-me nas veias e os sorrisos alimentavam-me a alma. 
Hoje passaram muito anos desde que este conto aconteceu por entre os meus dedos. Não mudei muito.)

quarta-feira, abril 21, 2010

Há quanto tempo é que não estás aqui?

Ele está sentado na cama. Costas encostas à cabeceira. Nu. Ela entra no quarto, fechando atrás de si a porta da casa de banho. Por debaixo do roupão branco não há mais nenhuma peça de roupa. O ar condicionado está ligado. Dentro dela um frio seco. Não é permitida quaisquer gotas de água por aqui.


-É isto que queres, não é?

O roupão abre-se. O corpo voluptuoso acontece aos olhos dele.

Nem sequer responde. Levanta-se de um pulo e agarra-a pela cintura depositando o corpo dela na cama por debaixo dele.

Ela odeia o corpo. As curvas da pele que ele vai tocando com a língua, os desniveis nos quais ele se perde com os dentes. Odeia o olhar dele que a aquece. Odeia as mãos dele que esboçam contornos no seu corpo. Devagar.
Demorando a tortura. Dentro de si. Pensa que está quase a acabar. Não foi desta. Alarme falso, ainda, a língua dele explorando os cantos e recantos da boca dela, pergunta-se se isto não acaba. Nunca mais.

Ela já não está ali. Há quanto tempo?

segunda-feira, abril 12, 2010

De vermelho.

As unhas vermelhas quebram-se na pele: abrem valas comuns. onde tu também podes morrer. se quiseres. se souberes morrer. entre um osso que se falsificou em titânio e um pedaço de carne ao qual já se tentou retirar todas as gorduras visiveis e invisiveis ao espelho da mente.

As unhas vermelhas quebram-se na pele: numa coreografia milimetricamente desenhada.  que nunca se perdem no seu longo percurso. abrir feridas é um trabalho até árduo e exige coordenação de movimentos.

Urdem-se chagas assim. De unhas pintadas de vermelho.


 ( Tinhas medo. Eu tenho a vida numa mão. )

quarta-feira, abril 07, 2010

Funeral blues - W.H Auden

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,

Silence the pianos and with muffled drum

Bring out the coffin, let the mourners come.


Let aeroplanes circle moaning overhead

Scribbling on the sky the message He Is Dead,

Put crepe bows round the white necks of the public doves,

Let the traffic policemen wear black cotton gloves.



He was my North, my South, my East and West,

My working week and my Sunday rest,

My noon, my midnight, my talk, my song;

I thought that love would last for ever: I was wrong.



The stars are not wanted now: put out every one;

Pack up the moon and dismantle the sun;

Pour away the ocean and sweep up the wood.

For nothing now can ever come to any good.

 
Porque resume tudo o que senti quando tive que me despedir de ti.