sexta-feira, agosto 15, 2014

Duplo Engano- O conto de um Verão

Duplo Engano

Chega cedo ao aeroporto. Não podes carregar mais do que uma mochila contigo no avião. Coloca a tua bagagem debaixo do banco em frente ao teu lugar, ou na bagageira por cima, se alguém te ajudar. Não adormeças. Ouve as instruções de segurança.

Sou outra. Provam-no as minhas calças de ganga estilo “baggy” e os ténis «All-Star» pretos. O cabelo esticado está preso por um elástico. Sem rimmel,  sombras nos olhos ou batom. Não pendem brincos das orelhas como é hábito. Há apenas uma t-shirt branca lisa e um casaco no colo para, quando aterrar, me proteger da eventual diferença de temperatura.
Tenho o cinto de segurança colocado. Pronta para a descolagem.

Não podes carregar frascos com líquidos com mais de cem mililitros. Tens que te sentar direita no avião e pôr o cinto durante a descolagem e aterragem. Não podes levar mais do que um isqueiro. Nem tesouras. Mastiga pastilha elástica por causa da pressão.  Opta pelo modo de voo no telemóvel durante a viagem. 

Estou sentada no lugar do meio. Entre dois homens. Um, entretém-se com uma revista de economia e política que folheia sem perder tempo a ler. O outro, mais velho, de calvície prematura, resmunga com as várias falhas da companhia área, primeiro pelo atraso na descolagem, depois pela temperatura do ar condicionado, e pela já costumeira  falta de espaço entre os assentos numa low-cost. «Viajamos num aviário», é a expressão utilizada. Rio-me. E ele nota. Porque há sempre razões para nos queixarmos, dou-lhe razão. A conversa acaba por acontecer, os temas surgem e prosseguem como cerejas na contagem dos minutos o nosso destino se completar.

Não podes fumar. Evita comer refeições pesadas. Ou beber álcool. Não fales com estranhos.

O outro, o da revista que não lê, pede desculpa e intervém na conversa. É um miúdo novo. Talvez até mais novo do que eu. Tem a barba por fazer porque quer ser mais velho. «E rico, acrescenta sem qualquer pudor a meio da conversa.» No saco das compras do aeroporto, traz tabaco. Contrabando para os amigos ingleses, justifica-se. Rimo-nos. Os humanos são seres gregários. Precisam de partilhar experiências. Neste pedaço de espaço definido no céu, na rota de Lisboa- Londres, acima das nuvens, muito acima dos oito mil pés de altitude, fala-se de tudo. Do que une os homens e as mulheres. Os diferentes idiomas que pronunciámos ao longo das nossas três vidas, as culturas que se gravaram na pele, as pessoas que fizeram acontecer o nosso passado. No fim, o trabalho como única tábua de salvação para a loucura.
«Um dia quero ser pai», diz o mais novo dos homens.
Fecho os olhos com muita força. Despercebidamente, toco-lhe no ombro com o meu. Num mano a mano que significa que também quero ser mãe. «Serás tu um bom pai?»
 Afasto o pensamento marcadamente biológico. Vibrante e orgulhoso, afirma que apesar disso, não se dá a ninguém.
 «Ninguém me conhece.»
Sinto-lhe o luto que se sobrepõe à idade, ao cabelo despenteado e ao sorriso indeciso  de puto convencido. «E tu», pergunta-me. Respiro a mesma falta de amor, apetece-me retribuir.
 «Vou casando», respondo.
O homem mais velho ri-se da cumplicidade que se instalou nos lugares 26 do avião. A sua mente vagueia por todas as mulheres de quem recorda o cheiro da pele, como réplicas de sismos a que submeteu o corpo.
Atesta-nos, a nós, novos na idade e na vida, que a incandescência do amor permanece. Ainda sem sequer nos apresentarmos, olhamos-nos pela primeira vez nos olhos. E não acreditamos nessa qualquer coisa a que não queremos dar nome ou existência. Prende os olhos e faz suar as mãos.

Podes morrer se o avião cair. Se sentires turbulência, olha pela janela. Não desperdices o momento, as nuvens que alcançaste e o medo que superaste. 

A voz do comandante informa que o voo está prestes a terminar. Em Londres não chove. Debita ainda uma série de outras coisas que o meu cérebro não processa. Nem em português nem em inglês. Olhamos para os respetivos relógios. Eu e ele. Passaram já duas horas e meia? Garantiria, a quem mo perguntasse, que passara apenas meia-hora. Apresentamos-nos finalmente: Maria, José. No original.
No desembarque, perdemos-nos do homem mais velho de quem nunca chegámos a saber o nome. Está mais habituado a despedidas do que nós.

Conserva o teu bilhete até abandonares o aeroporto. E o teu cartão de cidadão à mão. Leva contigo as libras.
O aeroporto são quilómetros de pessoas à espera de um sonho. Passaportes e identidades que são verificadas cuidadosamente.
«Qual foi a tua maior loucura?», pergunta-me José, enquanto aguardamos na fila para que as nossas identidades sejam verificadas e possamos entrar em Londres.
Ainda não a cometi, respondo-lhe.
Sim, eu sei, a fotografia do cartão de cidadão não se parece comigo neste momento. Mas, sim sou eu, confirmo em inglês. Ainda que não tenha ficado convencido, deixou-me passar.
E tu quem és, afinal? Como me desencantaste?
Aponta-me o hotel do aeroporto.
 «Temos esta noite. Podemos ser tudo.»
Olho desconfiada para o elevador que nos levará até ao hotel do aeroporto. Ele procura a minha mão e aperta-me os dedos. Estamos parados num corredor. Esbarram contra nós dezenas de pessoas com malas coloridas, crianças e tempos que nunca iremos adivinhar. Paralisámos num abraço estranho em que o desejo se insinua  quente e desconfiado.
«Podemos ter esta noite», repete-me ao ouvido. A barba dele roça no meu rosto. Evito o beijo. Os nossos lábios quase se tocam. Quase que se pode fazer acontecer outro futuro aqui neste território neutro.
Não deixaremos raízes se trocarmos de corpo, se limparmos o sangue e expelirmos o medo, pois não?

Engole sempre as lágrimas. Por mais ácidas que sejam. Mente. Foge de ti e dos outros. 

Os meus dedos ultrapassam a carne do seu rosto branco e pequeno. Quero decorá-lo, sulco a sulco. Os olhos castanhos, a barba por fazer, o queixo aquilino. Preciso que tudo fique retido em mim. Fechar o cheiro e esquecer-me devagar, todos os dias, se possível. Não lhe confesso nada disto.
Por fim, deixo que me aperte a cintura com os seus braços, e sinto, por um segundo, como poderia ser possível tudo isto. Não. Gritei nunca mais, há mais tempo do que tu, desculpa.
As nuvens atravessam-me os olhos.O teu nome e o meu:  José e Maria, no original.
«Promete que vais ser feliz.» – peço-lhe, enquanto lhe beijo a mão.
«Prometo. Mas não me vou esquecer do que poderia ter sido.»
«Não poderia ter sido nada. Só o que foi. O nosso momento de fogo e engano.»
Não olho para trás. Nunca mais.



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